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quinta-feira, 19 de março de 2009

Liberdade, Igualdade e Fraternidade




"Meu nome é Harvey Milk e estou aqui para recrutá-los". Era assim que um homem de meia idade, recém chegado de Nova York à cidade de São Francisco, na Califórnia, iniciava sempre os seus discursos para um grupo de homens cada vez mais numeroso. A "guerra" para qual ele convocava não só seus semelhantes, mas todas as minorias, não era um combate físico (apesar de não terem sido raros os casos de violência) e sim uma revolução do ponto de vista ideológico: a luta pelo direito de ser diferente e ao mesmo tempo igual.

Com a estréia de "Milk - A Voz da Igualdade", novo filme de Gus Van Sant (de "Elefante" e "Gênio Indomável"), o apelo de Harvey ganha agora projeção mundial, após ter recebido 8 indicações ao Oscar - incluindo melhor filme e melhor direção - e ter conquistado pelo menos dois prêmios importantes da Academia (Melhor Roteiro Original e Melhor Ator para Sean Penn).

É a oportunidade de um recrutamento sem precedentes, capaz de gerar eco até mesmo entre o público mais conservador (como aconteceu com os membros da Academia), desde que os espectadores ingressem nas salas de cinema deixando do lado de fora o preconceito, e mantenham não só os olhos, mas as mentes bem abertas.

Para os que ainda não estão a par da história, "Milk" é a cinebiografia do primeiro homossexual assumido a ocupar um cargo eletivo nos Estados Unidos. O filme começa com uma série de imagens que retratam a perseguição desmesurada da polícia e das autoridades políticas aos homossexuais, um retrato lamentável da intolerância da América dos anos 60 e 70, que precederam a ascensão de Harvey ao poder.

É o próprio Harvey Milk (em interpretação magistral de Sean Penn) que narra a sua história, numa espécie de testamento gravado que prenunciava o seu assassinato, vítima da ignorância, da inveja e do preconceito.

A história começa na véspera do seu aniversário de 40 anos. Naquela época, Harvey trabalhava para uma empresa de consultoria em Nova York e mantinha sua orientação sexual sob sigilo absoluto. Ele estava chegando à metade de sua vida e ainda não havia feito nada do que pudesse se orgulhar, nos conta em seu relato.



Após conhecer por acaso o jovem Scott Smith (James Franco, amadurecendo como ator), os dois se unem e decidem se mudar para São Francisco, onde abrem uma pequena loja de artigos fotográficos na então pouco conhecida Rua Castro (hoje o mais célebre reduto gay do mundo).

É em frente à pequena loja, que exibe a placa de "Estamos Abertos" na vitrine - e sob o olhar curioso, e não menos reprovador, de todos que passam pela rua - que os dois trocam um beijo cinematográfico. Este é o marco de uma nova vida para ambos, e para toda a Rua Castro, uma vida em liberdade em oposição à vida de temor e reclusão que levavam até então.

Não demora muito e Harvey começa a se envolver nas políticas da comunidade. Pouco a pouco, ele se torna o militante das minorias locais, a voz em defesa da classe operária, dos idosos e, como não poderia deixar de ser, dos homossexuais. É a grande oportunidade da sua vida, e Harvey decide agarrá-la com grande entusiasmo.

Ele decide se candidatar à Câmara de Supervisores da cidade de São Francisco (algo equivalente à Câmara de Vereadores, em nosso país). De palanque em palanque, de debate em debate, ele vai afinando o discurso, somando aliados e inimigos por onde quer que passe, até alcançar o tão almejado cargo e se tornar o primeiro grande líder do movimento pelos direitos dos homossexuais. Mas é claro que tudo isso tem um preço.

O engajamento de Harvey na política termina afastando pouco a pouco Scott da sua vida. O Harvey público se torna mais importante que o Harvey da vida privada. Logo surgem as ameaças de adversários políticos, que irá culminar com sua morte no auge da notoriedade.


Esta não é a primeira vez que Mr. Milk dá o ar de sua graça nas telas de cinema. Sua história já havia sido tema do documentário "The Times of Harvey Milk" (1984), de Rob Epstein, vencedor do Oscar de Melhor Documentário.

"Milk" é, no entanto, o primeiro filme de ficção a retratar o assunto. Mas não por acaso, tem uma influência muito grande do gênero documentário, alternando imagens de arquivo com as cenas de ficção - estas filmadas muitas vezes com câmera na mão e lentes especiais, para reproduzir a "atmosfera" da época; e em locações verídicas, para se aproximar ainda mais da realidade.

O cultuado diretor Gus Van Sant, diferente do que vinha apresentando em suas últimas obras, parece estar muito mais preocupado com o discurso do filme do que propriamente com seu aspecto estético. Mas isso não significa que não existam enquadramentos e soluções estéticas interessantes em Milk, ele apenas deixa de lado os longos planos sequência e a não-linearidade narrativa que fizeram do experimental Van Sant o grande vencedor do Festival de Cannes em 2003.

O filme, baseado em roteiro original de Dustin Lance Black (de longe o discurso de agradecimento mais comovente do Oscar deste ano, defendendo sua sexualidade em público), mantém um ritmo ágil e descontraído; é comovente, sem ser melodramático - e o mais importante: é ativista sem ser panfletário.

Os personagens do filme não são todos iguais. Pelo contrário, representam uma vasta gama de personalidades. Há homosexuais bons e também vilões. Há aqueles que acreditam na causa, e aqueles que lutam contra ela. Há os que alimentam esperança e os que pensam em suicídio. Há os assumidos e os enrustidos. Nem todos são vítimas, e nem afetados.


Já as falas do filme rendem algumas pérolas e justificam o prêmio de melhor roteiro original. Em um diálogo entre Havery Milk e seu colega parlamentar Dan White (interpretação competente de Josh Brolin, indicado ao Oscar de coadjuvante), os dois discutem sobre família e sociedade:

Dan: A sociedade não pode existir sem a família.
Harvey: Nós não estamos contra isso.
Dan: Dois homens podem reproduzir?
Harvey: Não, mas Deus sabe que nós continuamos tentando!

É com esse bom humor e carisma que Harvey Milk vai conquistando a empatia dos demais personagens e também dos espectadores. Mas nada disso seria possível sem o notável desempenho de Sean Penn. Suas atuações costumam dividir opiniões, mas é inegável a entrega dele ao personagem. Sean Penn não apenas interpreta Harvey Milk, ele se transformou no próprio Milk e nos brindou com uma atuação repleta de sutilezas. É admirável sua capacidade de dar vida a personagens tão díspares quanto o deficiente mental Sam, de "Uma Lição de Amor" (2001), o matemático cardíaco Paul, de "21 Gramas" (2003), e sobretudo, o inconformado Jimmy, de "Sobre Meninos e Lobos" (2003), que lhe rendeu o seu primeiro Oscar.

Apesar da trajetória de Harvey Milk ter sido marcada por tragédias que vão além da sua própria morte, o resumo da ópera é bastante otimista. O filme de Van Sant não chega ao nível de excelência de "O Segredo de Brokeback Mountain"- a premiada e contundente história do relacionamento amoroso entre dois cowboys, dirigida por Ang Lee, que entrou para a história em 2006 como o primeiro filme com temática claramente homossexual a ser indicado na categoria de Melhor Filme do Oscar.

Contudo, "Milk" talvez seja mais importante para o movimento gay do que "Brokeback Mountain", no sentido em que ele estimula os homossexuais a encararem sua própria sexualidade, a unirem esforços contra o preconceito e promoverem a esperança. Sob essa ótica, "Milk" representaria para a comunidade GLS o que "Tempo de Glória" (filme de 1989 sobre o primeiro exército americano inteiramente formado por soldados negros) é para a comunidade negra: um filme de auto-afirmação e inclusão social.

Por isso, não se pode rotular "Milk" de "filme para gays", pois não é preciso ser gay para compreender e simpatizar com as conquistas retratadas no filme, que são, acima de tudo, conquistas por direitos humanos (assim como não é preciso ser negro para se ter empatia por um personagem negro que luta por diretos iguais em combate ao preconceito).

O filme, aliás, soube driblar muito bem a questão do preconceito. Van Sant, que é homossexual e sempre tratou de incluir uma ou outra referência gay em boa parte de sua obra anterior, resolveu extravasar e não poupou cenas de beijos entre os casais do filme. Resultado: após o primeiro beijo entre os personagens de Sean Penn e James Franco (que em pleno século XXI ainda é capaz de provocar aversão em boa parte da platéia) seguem-se tantos outros que, após muitos beijos de projeção, o público parece nem se incomodar mais, passando a enxergar não apenas dois homens na tela, mas duas pessoas que se gostam, comprovando a teoria de que tudo é uma questão de hábito.

Ao final da projeção, o recado que o filme nos deixa parece ser bastante claro e direcionado: para mudar os outros é preciso primeiro mudar a si mesmo. Aliste-se!



Confira abaixo o trailer do filme:

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